terça-feira, 6 de outubro de 2020

Provocação a pensar a partir da própria fonte: o problema da igualdade em Antônio Vieira

§§13 a 16 do Sermão de Santo Antônio (1642), de autoria do Padre Antônio Vieira. Texto completo disponível em: http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com/2016/01/sermao-de-santo-antonio.html

Em tempos de pandemia, com muito mais razão se justifica o combate à desigualdade. Neste momento, quando já estão registradas mais de 172.000 mortes por COVID-19 no Brasil desde o primeiro óbito (12/03/2020), mais uma vez se nos revela a evidência de que quanto mais exacerbadas as diferenças entre segmentos de uma população, separados por diferentes condições de cidadania, maior a vulnerabilidade dessa população como um todo no combate ao inimigo comum.

No contexto teológico dos sermões de Padre Antônio Vieira, o combate à desigualdade enquanto doença social endêmica se justifica a partir das leis de natureza: se nas circunstâncias da luta pela vida devemos acreditar, como sendo uma verdade absoluta, que somos iguais por natureza, isto se deve só à consciência de si como sendo mortal; com base nessa evidência de caráter transcendente, as condições e os limites de ação sujeitos à força da lei se impõem a todos, sem excessão, como um ônus necessário à justiça e ao civismo.




13. (...) Convida Cristo aos homens para a aceitação e observância de sua Lei, e diz assim: Venite ad me omnes, qui laboratis, et onerati estis, et ego reficiam vos [Mt. 11,28]. Vinde a mim todos, que tão cansados e molestados vos traz o Mundo, e eu vos aliviarei: Tollite jugum meum super vos, et invenietis requiem animabus vestris [Mt. 11, 29]. Tomai o meu jugo sobre vós, e achareis descanso para a vida: Jugum enim meum suave est, et onus meum leve [Mt. 11, 13]: Porque o jugo de minha Lei é suave, e o peso de meus preceitos é leve.


14. Ora, se tomarmos bem o peso à Lei de Cristo, havemos de achar que tem alguns preceitos pesados, e, segundo a natureza, assaz violentos. Haver de amar aos inimigos, confessar um homem suas fraquezas a outro homem, bastar um pensamento para ofender gravemente a Deus e ir ao inferno, estes e outros semelhantes preceitos não há dúvida que são pesados e dificultosos, e por tais os estimou o mesmo Senhor, quando lhes chamou Cruz nossa: Tollat Crucem suam, et sequatur me [Mt. 16, 24]. Pois se os preceitos da Lei de Cristo, ao menos alguns, são cruz pesada, como lhes chama o Senhor jugo suave e carga leve: Jugum enim meum suave est, et onus meum leve? Antes de o Senhor lhes chamar assim, já tinha dito a causa: Venite ad me omnes. A lei de Cristo é uma lei que se estende a todos com igualdade, e que obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno, ao alto e ao baixo, ao rico e ao pobre, a todos mede pela mesma medida. E como a Lei é comum sem exceção de pessoas, e igual sem diferença de preceito, modera-se tanto o pesado no comum, e o violento no igual, que ainda que a lei seja rigorosa, é jugo suave; ainda que tenha preceitos dificultosos, é carga leve: Jugum meum suave est, et onus meum leve. É verdade que é jugo, é verdade que é peso, nem Cristo o nega; mas como é jugo que a todos iguala, o exemplo o faz suave; como é peso que sobre todos carrega, a companhia o faz leve. Clemente Alexandrino: Non praetergredienda est aequalitas, quae versatur in distributionibus honorando justitiam: propterea Dominus, Tollite, inquit, jugum meum super vos, quia benignum est, et leve.


15. O maior jugo de um Reino, a mais pesada carga de uma República, são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos. Se uns homens morreram, e outros não, quem levara em paciência esta rigorosa pensão da mortalidade? Mas a mesma razão que a estende, a facilita; e porque não há privilegiados, não há queixosos. Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador: Qui solem suum oriri facit super bonos, et malos, et pluit super justos, et injustos [Mt. 5, 45]. Se amanhece o Sol, a todos aquenta; e se chove o Céu, a todos molha. Se toda a luz caíra a uma parte, e toda a tempestade a outra, quem o sofrera? Mas não sei que injusta condição é a deste elemento grosseiro, em que vivemos, que as mesmas igualdades do Céu, em chegando à terra, logo se desigualam. Chove o Céu com aquela igualdade distributiva que vemos; mas em a água chegando à terra, os montes ficam enxutos, e os vales afogando-se: os montes escoam o peso da água de si, e toda a força da corrente desce a alargar os vales, e queira Deus que não seja teatro de recreação para os que estão olhando do alto, ver nadar as cabanas dos pastores sobre os dilúvios de suas ruínas. Ora, guardemo-nos de algum dilúvio universal, que quando Deus iguala desigualdades, até os mais altos montes ficam debaixo da água. O que importa é que os montes se igualem com os vales, pois os montes são a quem principalmente ameaçam os raios: e reparta-se por todos o peso, para que fique leve a todos. Os mesmos animais de carga, se a deitam toda a uma parte, caem com ela; e a muitos navios meteu nas mãos dos piratas a carga, não por muita, mas por descompassada. Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo: Nullus enim gravanter obtulit, quod cum aequitate persolvitur: Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade, disse o político Cassiodoro.


16. Boa doutrina estava esta, se não fora dificultosa, e, ao que parece, impraticável. Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do Reino é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? Já se sabe que há de ser: Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: Vós sois semelhantes ao Sal, senão: Vos estis. Vós sois sal. Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação. Por isso tendo Cristo constituído aos Apóstolos ministros da Redenção, e conservadores do Mundo, não os considera sal por semelhança, senão sal por realidade: Vos estis sal: por que o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência, e devem os homens deixar de ser o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox [Jo. 1, 23]: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício, porque cada um é o que deve ser, e se não, não é o que deve. Se os três estados do Reino, atendendo a suas preeminências, são desiguais, atendam a nossas conveniências, e não o sejam. Deixem de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna.


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