sábado, 31 de agosto de 2013

Sobre o dever da educação maternal

Jean-Jacques Rousseau

Excerto de Júlia ou A nova Heloísa, Quinta Parte. Tradução e Introdução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo-Campinas: Hucitec-Ed. da Unicamp, 1994, p. 482-505.
Notas ao final do texto.


Romance epistolar, Júlia ou A Nova Heloísa (1761), narra a história de um jovem professor de Filosofia, plebeu, Saint-Preux, que se apaixona pela sua aluna Júlia, mas que não pôde casar com ela porque o pai da jovem, nobre aristocrático, o considerou um pretendente inadequado. Para atender ao interesse paterno, Júlia casa com outro, o Sr. de Wolmar, um rico latifundiário cuja inteligência, compreensão e bondade conquistam sua afeição, mas não desfazem a forte atração de Júlia por Saint-Preux. A tensão entre razão e sensibilidade leva a personagem Júlia a declarar: “Muitas vezes senti-me errada em meus raciocínios, nunca nos impulsos secretos que mos inspiram, e isso faz com que eu tenha maior confiança em meu instinto do que em minha razão” (Segunda Parte, Carta XVIII). Ao abrigo do sentimento de confiança, como necessário à sustentabilidade das relações harmoniosas entre os indivíduos, Júlia preserva tanto sua obrigação moral quanto o seu dever ético no cumprimento do matrimônio e da educação materna, e em consequência a sua fidelidade ao marido, de maneira a transformar sua paixão por Saint-Preux em lealdade e amizade.

Carta III(1)
De Saint-Preux a Milorde Eduardo

Tivemos hóspedes nestes últimos dias. Partiram ontem e recomeçamos entre nós três uma união tanto mais encantadora por nada ter permanecido no fundo dos corações que se queira esconder um do outro. Que prazer sinto ao retomar um novo ser que me torna digno de vossa confiança! Não recebo nem uma marca de estima de Júlia e de seu marido sem dizer-me com um certo orgulho da alma: enfim, ousarei mostrar-me a ele. É por vossos cuidados, é sob vossos olhos que espero honrar meu presente estado por minhas faltas passadas. Se o amor extinto lança a alma no esgotamento, o amor subjugado dá-lhe, com a consciência de sua vitória, uma nova elevação e um mais forte atrativo por tudo o que é grande e belo. Seria possível perder o fruto de um sacrifício que nos custou tão caro? Não, Milorde, sinto que, como vós, meu coração vai utilizar todos os ardentes sentimentos que venceu. Sinto que é preciso ter sido o que fui para tornar-me o que devo ser.

Após seis dias perdidos em conversas com pessoas indiferentes, passamos hoje uma manhã à inglesa, reunidos e em silêncio, saboreando ao mesmo tempo o prazer de estarmos juntos e a suavidade do recolhimento. Como são poucas as pessoas que conhecem as delícias deste estado! Não vi ninguém na França ter dele a mínima ideia. A conversa dos amigos nunca se esgota, dizem eles. É verdade, a língua fornece uma tagarelice fácil às afeições medíocres. Mas a amizade, Milorde, a amizade! Sentimento intenso e celeste, que palavras são dignas de ti? Que língua ousa ser tua intérprete? O que se diz ao amigo pode algum dia valer o que se sente ao seu lado? Meu Deus! Como uma mão que se aperta, como um olhar animado, como um abraço apertado contra o peito, como o suspiro que o segue dizem coisas e como a primeira palavra que se pronuncia é fria após tudo isso! Oh! Serões de Besançon! Momentos consagrados ao silêncio e recolhidos pela amizade! Oh! Bomston! Alma grande, amigo sublime! Não, não depreciei o que fizeste por mim e minha boca nunca te disse nada.

É certo que este estado de contemplação é um dos grandes encantos dos homens sensíveis. Mas sempre achei que os importunos impediam de gozá-lo e que os amigos precisam estar sem testemunhas para poderem nada dizer-se, à vontade. Deseja-se, por assim dizer, estar recolhidos um no outro, as menores distrações são desoladoras, a menor coação é insuportável. Se, algumas vezes, o coração leva uma palavra à boca é tão doce poder pronunciá-la sem constrangimento. Parece que não se ousa pensar livremente o que não se ousa dizer da mesma forma: parece que a presença de um único estranho retém o sentimento e comprime almas que se compreenderiam tão bem sem ele.

Duas horas se escoaram assim, entre nós, nessa imobilidade de êxtase mil vezes mais doce do que o frio repouso dos Deuses de Epicuro. Após o desjejum, as crianças entraram, como sempre, no quarto de sua mãe mas, em lugar de ir em seguida encerrar-se com elas no gineceu, segundo seu costume, para compensar-nos, de alguma forma, do tempo perdido sem nos vermos, fê-los permanecer com ela e não nos separamos até o almoço. Henriqueta, que começava a saber segurar a agulha, trabalhava sentada diante de Fanchon que fazia renda, cujo bastidor se apoiava nas costas de sua cadeirinha. Os dois meninos folheavam sobre a mesa uma coletânea de imagens, cujo assunto o mais velho explicava ao mais moço. Quando se enganava, Henriette, atenta e conhecendo a coletânea de cor, tinha o cuidado de corrigi-lo. Frequentemente, fingindo ignorar diante de que estampa estavam, fazia disto um pretexto para levantar-se, ir e voltar de sua cadeira à mesa e da mesa à cadeira. Tais passeios não lhe desagradavam e lhe atraiam sempre alguma implicância da parte do malidinho; algumas vezes, mesmo, a ela acrescentava-se um beijo que sua boca infantil ainda sabe aplicar mal, mas de que Henriqueta, já mais sábia, poupa-lhe de boa vontade o trabalho. Durante essas pequenas advertências, que eram recebidas e dadas sem muita preocupação, mas também sem o menor constrangimento, o mais moço contava furtivamente as varetas de buxo que escondera debaixo do livro.

A Senhora de Wolmar bordava perto da janela, de frente para as crianças; estávamos, seu marido e eu, ainda ao redor da mesa de chá, lendo a gazeta, à qual ela dava bem pouca atenção. Mas à notícia da doença do Rei da França e da afeição singular de seu povo, que nunca teve igual a não ser a dos Romanos para com Germânico, ela fez algumas reflexões sobre a boa índole dessa nação doce e benevolente que todas odeiam e que não odeia nenhuma, acrescentando que somente invejava, do posto supremo, o prazer de fazer-se amar. Não invejeis nada, disse-lhe seu marido, com um tom que deveria ter deixado que eu tomasse, há muito somos todos vossos súditos. Ao ouvir essas palavras, seu trabalho caiu-lhe das mãos, virou a cabeça e lançou a seu digno esposo um olhar tão tocante, tão terno, que eu-mesmo estremeci. Não disse nada: que teria dito que tivesse valido esse olhar? Nossos olhos também se encontraram. Senti, pela maneira com que seu marido me apertou a mão, que a mesma emoção se comunicara aos três e que a doce influência dessa alma expansiva agia ao seu redor e triunfava da própria insensibilidade.

Foi com essas predisposições que iniciou o silêncio de que vos falava; podeis julgar que não era de frieza e de tédio. Era interrompido apenas pelas pequenas manobras das crianças; mesmo assim, logo que cessamos de falar, moderaram, por imitação, sua tagarelice, como se temessem perturbar o recolhimento geral. A pequena Superintendente foi a primeira a baixar a voz, a fazer sinal aos outros, a correr na ponta dos pés, e seus jogos tornaram-se tanto mais divertidos quanto esse leve constrangimento acrescentava a eles um novo interesse. Esse espetáculo, que parecia ser posto sob nossos olhos para prolongar nosso enternecimento, produziu seu efeito natural.

Ammutiscon le lingue, e parlen l’alme(2)

Quantas coisas foram ditas sem abrir a boca! Quantos ardentes sentimentos foram comunicados sem a fria intervenção da palavra! Insensivelmente, Júlia deixou-se absorver por aquele que dominava todos os outros. Seus olhos fixaram-se exclusivamente sobre seus três filhos e seu coração, arrebatado num tão delicado êxtase, animava seu rosto encantador com tudo o que a ternura materna jamais teve de mais comovente.

Entregues nós mesmos a essa dupla contemplação, deixávamo-nos arrastar, Wolmar e eu, para nossos devaneios, quando as crianças, que os causavam, fizeram com que acabassem. O mais velho, que se divertia com as imagens, vendo que as varetas impediam seu irmão de prestar atenção, esperou que as tivesse reunido e, dando-lhe um golpe com a mão, espalhou-as pelo quarto. Marcelino pôs-se a chorar e, sem agitar-se para fazê-lo calar, a Sra. de Wolmar disse a Fanchon que levasse embora as varetas. A criança calou-se imediatamente mas as varetas não deixaram de ser levadas embora, sem que ele tenha recomeçado a chorar, como eu esperava. Essa circunstância, que tinha pouca importância, lembrou-me muitas coisas às quais não prestara atenção e não lembro, pensando no fato, ter visto crianças a quem se falasse tão pouco e que fossem menos importunas. Quase nunca se afastam de sua mãe e mal percebemos que estão presentes. São vivas, estouvadas, buliçosas, como convém, à sua idade, nunca são importunas nem gritonas e vê-se que são sensatas antes de saber o que é a sensatez. O que mais me espantava nas reflexões a que tal assunto me conduziu era que isso acontecesse naturalmente e que, com uma tão intensa ternura por seus filhos, Júlia se atormentasse tão pouco com eles. De fato, nunca a vemos desvelar-se para fazê-los falar ou calar, nem para prescrever-lhes ou proibir-lhes isto ou aquilo. Não briga com eles, não os contraria em seus divertimentos, dir-se-ia que se contenta em vê-los e em amá-los e que, quando tiverem passado o dia com ela, todo seu dever de mãe está preenchido.

Embora essa calma tranquilidade me parecesse mais doce de ver do que a inquieta solicitude das outras mães, eu não estava menos impressionado com uma indolência que pouco se ajustava às minhas ideias. Teria desejado que ela ainda não estivesse satisfeita, com tantos motivos para o estar: uma atividade supérflua convém tanto ao amor materno! Tudo o que via de bom em seus filhos teria desejado atribuí-lo aos seus cuidados, teria desejado que devessem menos à natureza e mais a sua mãe, desejei quase que tivessem defeitos para vê-la mais diligente em corrigi-los.

Após ter-me por muito tempo ocupado, em silêncio, com tais reflexões, rompi-o para lhas comunicar. Vejo, disse-lhe, que o Céu recompensa a virtude das mães pela boa índole dos filhos: mas esta boa índole quer ser cultivada. E desde o nascimento que deve começar sua educação. Existirá uma época mais propícia para formá-los do que aquela em que ainda não possuem nenhuma forma para destruir? Se os entregais a si mesmos desde a infância, em que idade esperareis deles a docilidade? Mesmo que nada tivésseis para ensinar-lhes, seria ainda necessário aprender a obedecer-vos. Percebestes respondeu, que me desobedecem? Isto seria difícil, disse eu, pois não lhes ordenais nada. Ela sorriu, olhando seu marido e, tomando- me pela mão, levou-me para o gabinete, onde podíamos conversar os três sem sermos ouvidos pelas crianças.

Foi lá que, ao explicar-me tranquilamente suas máximas, ela me fez ver, sob um ar de negligência, a mais vigilante atenção que já atingiu a ternura materna. Por muito tempo, disse-me ela, pensei como vós sobre as instruções prematuras e durante minha primeira gravidez, assustada com todos os meus deveres e com os cuidados que em breve deveria preencher, falava muitas vezes no assunto, e com inquietação, com o Sr. de Womar. Que melhor guia podia escolher, nesse ponto, do que um observador esclarecido, que reunia ao interesse de um pai o sangue-frio de um filósofo? Ele preencheu e ultrapassou minha expectativa, dissipou meus preconceitos e ensinou-me a garantir, com menor trabalho, um sucesso muito mais extenso. Fez-me sentir que a primeira e a mais importante educação, exatamente aquela que todo o mundo esquece(3) é a de preparar a criança para ser educada. Um erro comum a todos os pais que creem ter luzes é o de supor que desde o nascimento seus filhos sejam capazes de raciocinar, e de falar-lhes como homens antes mesmo que saibam falar. A razão é o instrumento que se pensa usar para instruí-los enquanto os outros instrumentos devem servir para formá-la e enquanto, de todas as instruções próprias do homem, aquela que ele adquire mais tarde e com maior dificuldade é a própria razão. Falando-lhes, desde sua primeira idade, uma língua que não compreendem, acostumamo-los a contentarem-se com palavras, a fazer com que outros com elas se contentem, a controlar tudo que lhes dizemos, a julgar-se tão sábios quanto seus mestres, a tornarem- se briguentos e teimosos e tudo o que se pensa obter deles por motivos sensatos só o obtemos, de fato, pelos de temor ou de vaidade que sempre somos obrigados a acrescentar.

Não há paciência que não canse enfim a criança que se quer criar dessa maneira e eis como, aborrecidos, cansados pela eterna incomodação com a qual eles mesmos os habituaram, os pais, não podendo mais suportar a balbúrdia das crianças, são forçados eles mesmos a afastá-las, entregando-as aos mestres, como se se pudesse um dia esperar de um Preceptor maior paciência ou doçura do que pode ter um pai.

A natureza, continuou Júlia, quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos alterar essa ordem, produziremos frutos precoces que não terão nem maturidade nem sabor e não tardarão a corromper-se; teremos jovens doutores e velhas crianças. A infância tem maneiras de ver, de pensar, de sentir, que lhe são próprias. Nada e menos sensato do que a elas querer substituir as nossas e preferiria exigir que uma criança tivesse cinco pés de altura a exigir que tivesse julgamento aos dez anos.

A razão somente começa a formar-se ao final de vários anos e quando o corpo tiver adquirido uma certa consistência. É intenção da natureza, portanto, que o corpo se fortifique antes que o espírito se exerça. As crianças estão sempre em movimento, o repouso e a reflexão são o desgosto de sua idade, uma vida aplicada e sedentária impede-as de crescer e de aproveitar; nem seu espírito, nem seu corpo podem suportar a sujeição. Continuamente encerrados num quarto com livros, perdem todo o seu vigor, tornam-se delicadas, fracas, de má saúde, mais imbecis do que dotadas de razão; e alma sofre por toda a vida com o definhamento do corpo.

Mesmo que todas essas instruções prematuras fossem tão proveitosas ao seu julgamento quanto o prejudicam, ainda assim haveria um enorme inconveniente em dar-lhos indistintamente e sem consideração para com aquelas que convêm melhor ao gênio de cada criança. Além da constituição comum à espécie, cada uma traz, ao crescer, um temperamento particular que determina seu gênio e seu caráter e que não se deve transformar nem forçar, mas formar e aperfeiçoar. Todos os caracteres são bons e sãos em si mesmos, segundo o Sr. de Wolmar. Há, diz ele, erros na natureza(4). Todos os vícios que se imputam a seu natural são o efeito das más formas que recebeu. Não há celerado cujas inclinações, se tivessem sido mais bem dirigidas, não teriam produzido grandes virtudes. Não há espírito pérfido do qual não se tivesse extraído talentos úteis ao tomá-lo de uma certa maneira, como essas figuras disformes e monstruosas que tornamos belas e bem proporcionadas colocando-as em seu ponto de vista. Tudo concorre para o bem comum no sistema universal. Todo homem tem seu lugar assinalado na melhor ordem das coisas, trata-se de encontrar esse lugar e de não alterar essa ordem. Que acontece com uma educação iniciada desde o berço e sempre segundo uma mesma fórmula, sem levar em consideração a prodigiosa diversidade dos espíritos? Acontece que se dão à maioria instruções perniciosas ou impróprias; que os privam das que lhes conviriam; que se constrange de todos os lados a natureza; que se apagam as grandes qualidades da alma, para substituir-lhes as pequenas e aparentes que não possuem nenhuma realidade; que, treinando indistintamente para as mesmas coisas tantos talentos diferentes, destroem-se uns pelos outros, confundem-se todos; que, depois de muitos cuidados perdidos em estragar nas crianças os verdadeiros dons da natureza, vê-se murchar em pouco tempo esse esplendor passageiro e frívolo que se lhes prefere, sem que o natural abafado volte algum dia; que se perde ao mesmo tempo o que se destruiu e o que se fez; que, finalmente, como fruto de tanto trabalho levianamente assumido, todos esses pequenos prodígios tornam-se espíritos sem força e homens sem mérito, notáveis unicamente por sua fraqueza e por sua inutilidade(5).

Compreendo essas máximas, disse a Júlia, mas tenho dificuldades em harmonizá-las com vossas próprias opiniões sobre a pequena vantagem que há em desenvolver o gênio e os talentos naturais de cada indivíduo, seja para sua própria felicidade, seja para o verdadeiro bem da sociedade. Não é infinitamente preferível formar um perfeito modelo de homem sensato e do homem de bem, depois aproximar cada criança desse modelo pela força da educação, estimulando um, retendo outro, reprimindo as paixões, aperfeiçoando a razão, corrigindo a natureza... Corrigir a natureza! Disse Wolmar interrompendo-me, esta palavra é bela, mas antes de usá-la seria preciso responder ao que Júlia acaba de dizer-vos.

Uma resposta peremptória, ao que me parecia, era a de negar o princípio; foi o que fiz. Supondes sempre que essa diversidade de espíritos e de gênios, que distinguem os indivíduos, seja a obra da natureza e isto não é nada menos do que evidente. Pois, enfim, se os espíritos são diferentes eles são desiguais e, se a natureza os tornou desiguais, foi dotando-os a uns mais do que a outros um pouco mais de sentido de finura, de extensão da memória ou de capacidade de atenção. Ora, quanto aos sentidos e à memória, está provado pela experiência que seus diversos graus de extensão e de perfeição não são a medida do espírito dos homens e, quanto à capacidade de atenção, depende ela unicamente da força das paixões que nos animam e já está provado que todos os homens são, por sua natureza, suscetíveis de paixões suficientemente fortes para dotá-los do grau de atenção ao qual está ligada a superioridade do espírito.

Se a diversidade dos espíritos, em lugar de vir da natureza, fosse uma consequência da educação, isto é, das diferentes ideias, dos diferentes sentimentos excitados em nós desde a infância pelas coisas que nos impressionam, as circunstâncias em que nos encontramos e todas as impressões que recebemos, bem longe de esperar para conhecer o caráter de seu espírito para educar as crianças, seria preciso, pelo contrário, apressar-se em determinar convenientemente esse caráter, através de uma educação própria àquele que queremos dar-lhes.

A isso respondeu-me que não era seu método negar o que via quando não podia explicá-lo. Olhai, disse-me ele, esses dois cães que estão no pátio. São da mesma ninhada, foram alimentados e tratados da mesma maneira, nunca se separaram: contudo, um deles é vivo, alegre, afetuoso, inteligente; o outro vagaroso, pesado, rabugento, e nunca se pôde ensinar- lhe alguma coisa. Só a diferença entre os temperamentos produziu neles a dos caracteres, como apenas a diferença da organização interior produz em nós a dos espíritos; o resto foi semelhante... Semelhante? Interrompi, que diferença? Quantas pequenas coisas agiram num e não no outro! Quantas pequenas circunstâncias os impressionaram de forma diferente sem que o tenhais percebido! Bom, replicou, estais raciocinando como os antropólogos. Quando se lhes obstava que dois homens nascidos sob o mesmo aspecto tinham sortes tão diferentes, rejeitavam bem longe essa identidade. Afirmavam que, dada a rapidez dos céus, havia uma distância imensa entre o tema de um desses homens e o do outro e que, se tivesse sido possível marcar os dois instantes exatos de seus nascimentos, a objeção ter-se-ia tornado prova.

Abandonemos, peço-vos, todas essas sutilezas e permaneçamos na observação. Ela nos ensina que há caracteres que se manifestam quase ao nascer e crianças que podem ser estudadas no seio de sua ama. Aqueles formam uma classe à parte e são educados ao começar a viver. Mas, quanto aos outros, que se desenvolvem menos rapidamente, querer fechar seu espírito antes de conhecê-lo significa expor-se a estragar o bem que a natureza fez e fazer em seu lugar um mal maior. Platão, vosso mestre, não afirmava que todo o saber humano, toda a filosofia apenas podia extrair de uma alma humana o que a natureza nela pusera, assim como as operações químicas só extraíram de algum composto a quantidade de ouro que ele já continha? Isso não é verdade nem no que diz respeito a nossos sentimentos nem a nossas ideias, mas é verdade no que diz respeito a nossas disposições em adquiri-los. Para transformar um espírito seria preciso transformar a organização interior, para transformar um caráter seria preciso transformar o temperamento de que depende. Já ouvistes dizer que um exaltado se tenha tornado fleugmático e que um espírito metódico e frio tenha adquirido imaginação? Quanto a mim, penso que da mesma forma seria fácil fazer de um moreno um loiro e de um tolo um homem de espírito. É portanto em vão que se pretenderia refundir os diferentes espíritos num modelo comum. Podem ser coagidos e não transformados: é possível impedir os homens de se mostrarem tais quais são mas não torná-los diferentes e, se se disfarçam no curso ordinário da vida, vê-los-eis em todas as ocasiões importantes retomar seu caráter original e a ele entregar-se com tanto menor método quanto não mais o conhecem ao entregar-se. Ainda uma vez, não se trata de transformar o caráter e de modificar o natural mas, pelo contrário, de lançá-lo tão longe quanto pode ir, de cultivá-lo e de impedir que degenere, pois é assim que um homem se torna tudo o que pode ser e que a obra da natureza nele se completa pela educação. Ora, antes de cultivar o caráter é preciso estudá-lo, esperar tranquilamente que se mostre, fornecer-lhe as ocasiões de mostrar-se e, de preferência, antes abster-se sempre de fazer algo a agir fora de propósito. A tal gênio é preciso dar asas, a outros entraves; um quer ser apressado, o outro retido; um quer que o lisonjeiem e o outro que o intimidem; seria preciso ora esclarecer ora confundir. Tal homem é feito para levar o conhecimento humano até seu último limite, a tal outro é mesmo funesto saber ler. Esperemos a primeira centelha da razão, é ela que faz aparecer o caráter e lhe dá sua verdadeira forma, é através dela também que é cultivado e não há, antes da razão, verdadeira educação para o homem.

Quanto às máximas de Júlia, com que não concordais, não sei o que nelas vedes de contraditório: quanto a mim, acho-as perfeitamente harmonizadas. Cada homem traz ao nascer um caráter, um gênio e talentos que lhe são próprios. Os que são destinados a viver na simplicidade campestre não precisam, para serem felizes, do desenvolvimento de suas faculdades e seus talentos escondidos são como as minas de ouro do Valais que o bem público não permite explorar. Mas no estado civil, onde há menor necessidade de braços do que de cabeças, e onde cada um deve conta a si mesmo e aos outros de todo o seu valor, importa aprender a extrair dos homens tudo o que a natureza lhes deu, a dirigi-los para o lado em que podem ir mais longe e sobretudo a alimentar suas inclinações com tudo o que pode torná-las úteis. No primeiro caso, só se considera a espécie, cada um faz o que fazem todos os outros, o exemplo é a única regra, o hábito é o único talento e cada um somente exerce, de sua alma, a parte comum a todos. No segundo, considera-se o indivíduo: que pertence ao homem em geral, acrescenta-se tudo o que pode ter a mais do que um outro; seguindo-o tão longe quanto a natureza o conduz far-se-á dele o maior dos homens se tiver o que é preciso para sê-lo. Estas máximas se contradizem tão pouco que a prática é a mesma para a primeira idade. Não instruais o filho do camponês pois não lhe convém ser instruído; não instruais o filho do Citadino pois ainda não sabeis que instrução lhe convém. Seja como for, deixai formar-se o corpo até que a razão comece a despontar: é então o momento de cultivá-la.

Tudo isso me pareceria perfeito, disse eu, se não visse um inconveniente que prejudica muito as vantagens que esperais desse método, é o de deixar que as crianças adquiram mil maus hábitos que só se evitam com os bons. Vede as que se abandonam a si mesmas, contraem em breve todos os defeitos cujo exemplo impressiona seus olhos porque esse exemplo é fácil de ser seguido e nunca imitam o bem, que custa mais praticar. Acostumados a obter tudo, a fazer em qualquer ocasião sua irrefletida vontade, tornam-se turbulentas, obstinadas, incorrigíveis... Mas, continuou o Sr. de Wolmar, parece-me que observastes o contrário nas nossas e que foi o que causou esta conversa. Confesso-o, disse, e é exatamente o que me espanta. Que fez ela para torná-las dóceis? Como agiu? Que substituiu ao jugo da disciplina? Um jugo bem mais inflexível, disse imediatamente, o da necessidade: mas, narrando-vos sua conduta, ela vos fará compreender melhor suas ideias. Então levou-a a explicar-me seu método e, após uma curta pausa, eis mais ou menos como ela me falou.

Felizes os bem nascidos, meu amável amigo! Não presumo tanto de nossos cuidados quanto o Sr. de Wolmar. Apesar de suas máximas, duvido que se possa algum dia tirar bom proveito de um caráter ruim e que qualquer índole possa ser levada ao bem: mas, finalmente, convencida da qualidade de seu método, procuro conformar-me a ele em toda a minha conduta na direção da família. Minha primeira esperança é que os maus não tenham saído de meu seio, a segunda é de educar bastante bem os filhos que Deus me deu, sob a direção de seu pai, para que tenham um dia a felicidade de a ele se assemelharem. Para isso, procurei fazer minhas as regras que me prescreveu, conferindo-lhes um princípio menos filosófico e mais conveniente ao amor materno: é o de ver meus filhos felizes. Foi este o primeiro desejo de meu coração ao usar o doce nome de mãe e todos os cuidados de minha vida são destinados a realizá-lo. A primeira vez que segurei nos braços meu filho mais velho pensei que a infância é quase um quarto das mais longas vidas, que raramente chegamos aos três outros quartos e que é uma sabedoria bem cruel a de tornar infeliz essa primeira parte para assegurar a felicidade do resto, que talvez nunca chegue. Pensei que durante a fraqueza da primeira idade a natureza subjuga as crianças de tantas maneiras que é bárbaro acrescentar a esse jugo o poder de nossos caprichos, retirando-lhe uma liberdade tão limitada e da qual podem abusar tão pouco. Resolvi poupar a meu filho, tanto quanto possível, todo tipo de coação, deixa-lhe todo o uso de suas pequenas forças e de não impedir nele nenhum dos impulsos da natureza. Já tive com isso duas grandes vantagens: uma a de afastar de sua alma recém-nascida a mentira, a vaidade, a cólera, a inveja, numa palavra, todos os vícios que nascem da escravidão e que se é obrigado a fomentar nas crianças para obter delas o que se exige: a outra, a de deixar seu corpo fortificar-se livremente pelo exercício contínuo que o instinto lhe pede. Acostumado, como os camponeses, a andar ao sol, ao frio com a cabeça descoberta, a esfalfar-se, a suar, a enrijecer-se como eles às injúrias do ar, torna-se mais robusto vivendo mais contente. É o caso de pensar na idade adulta e nos acasos da humanidade. Já vo-lo disse, temo essa pusilanimidade assassina que, à força de delicadeza e de cuidados, enfraquece uma criança, retira-lhe a energia, atormenta-a com uma eterna sujeição, domina-a com mil vãs precauções, enfim, a expõe por toda a vida aos perigos inevitáveis dos quais a quer preservar por um momento e, para evitar-lhe alguns resfriados em sua infância, prepara-lhe de longe pneumonias, pleurisias, insolações e a morte logo que se torna homem.

O que dá às crianças entregues a si mesmas a maioria dos defeitos de que falais é quando, não contentes em fazer sua própria vontade, fazem ainda com que os outros a façam e isso pela insensata indulgência das mães a quem não se compraz senão favorecendo todos os caprichos de seu filho. Meu amigo, orgulho-me por nada terdes visto nos meus que mostre o poder e a autoridade, mesmo com o último dos empregados, e por também não me terdes visto aplaudir secretamente as falsas complacências que se têm para com eles. É aqui que julgo seguir uma estrada nova(5) e segura para tornar ao mesmo tempo uma criança livre, tranquila, afetuosa, dócil e isso de um modo muito simples, o de convencê-la de que é apenas uma criança.

Considerando a infância em si mesma, existirá no mundo um ser mais fraco, mais digno de piedade, mais à mercê de tudo o que o rodeia, que tenha tanta necessidade de piedade, de amor, de proteção quanto uma criança? Não parece ser por essa razão que as primeiras vozes que lhe são sugeridas pela natureza são os gritos e as queixas, que ela lhe deu um aspecto tão doce e um ar tão comovente a fim de que tudo o que dela se aproxima se interesse por sua fraqueza e se apresse em socorrê-la? Que há pois de mais chocante, de mais contrário à ordem do que ver uma criança arrogante e rebelde dominar tudo o que a rodeia, adquirir insolentemente um tom de patrão para com aqueles que apenas precisariam abandoná-la para fazê-la morrer e pais cegos que, aprovando essa audácia, a preparam para tornar-se o tirano de sua ama, antes de tornar-se o deles.

Quanto a mim, nada poupei para afastar de meu filho a perigosa imagem do poder e da servidão e para nunca dar-lhe a oportunidade de pensar que foi servido mais por dever do que por piedade. Este ponto é, talvez, o mais difícil e o mais importante de toda a educação e a narração infindável de todas as precauções que tive de tomar para evitar nele esse instinto tão pronto a distinguir os serviços mercenários dos empregados e a ternura dos cuidados maternos não acabaria nunca.

Um dos principais meios que empreguei foi, como já vo-lo disse, o de convencê-lo bem da impossibilidade em que o mantém sua idade de viver sem nossa assistência. Após o quê, não tive dificuldade em mostrar-lhe que toda a ajuda que se é forçado a receber de outras pessoas são atos de dependência, que os empregados têm uma verdadeira superioridade sobre ele, pelo fato de não poder prescindir deles, enquanto ele não lhes serve para nada; de maneira que, longe de envaidecer-se com seus serviços, recebe-os com uma espécie de humilhação, como um testemunho de sua fraqueza e deseja ardentemente a época em que será bastante grande e bastante forte para ter a honra de servir-se a si mesmo.

Estas ideias, disse eu, seriam difíceis de serem estabelecidas em casas em que o pai e a mãe se fazem servir como crianças: mas nesta, onde cada um, a começar por vós, tem suas funções a preencher, e onde as relações entre criados e patrões são apenas uma perpétua troca de serviços e de cuidados, não creio que seja impossível instituí-lo. Contudo, falta-me conceber como crianças acostumadas a ver suas necessidades previstas não estendam esse direito aos seus caprichos ou como não sofreram algumas vezes com a disposição de um empregado que tratará como capricho uma verdadeira necessidade.

Meu amigo, replicou a Senhora de Wolmar, uma mãe pouco esclarecida vê monstros em toda a parte. As verdadeiras necessidades são muito limitadas nas crianças como nos homens, e deve-se olhar mais a duração do bem-estar do que o bem-estar de um só momento. Pensais que uma criança que não é incomodada possa sofrer suficientemente com o humor de sua governanta sob os olhos de uma mãe para sentir-se incomodada? Supondes inconvenientes que nascem de vícios já adquiridos, sem pensar que todos os meus cuidados tiveram o objetivo de impedir que tais vícios nascessem. Naturalmente, as mulheres amam as crianças. A desinteligência eleva-se entre elas somente quando uma quer submeter s outra aos seus caprichos. Ora, isso não pode acontecer aqui, nem à criança, de quem nada se exige, nem à governanta, a quem a criança não deve ordenar nada. Neste ponto, fiz exatamente o contrário de outras mães que fingem querer que a criança obedeça ao empregado e querem, de fato, que o empregado obedeça à criança. Ninguém aqui manda nem obedece. Mas a criança só obtém daqueles que dela se aproximam a exata complacência que ela tiver para com eles. Com isso, sentindo que tem, sobre tudo o que a rodeia, apenas a autoridade da benevolência, torna-se dócil e complacente; procurando atrair os corações dos outros, o seu afeiçoa-se a eles por sua vez, pois ama- se fazendo-se amar; é o infalível efeito do amor-próprio e, dessa afeição recíproca, nascida da igualdade, resultam sem esforço as boas qualidades que se pregam continuamente a todas as crianças sem nunca obter nenhuma.

Pensei que a parte mais essencial da educação de uma criança, aquela de que nunca se fala nas educações mais bem cuidadas é a de fazer-lhes bem sentir sua miséria, sua fraqueza, sua dependência e, como vos disse meu marido, o pesado jugo da necessidade que a natureza impõe ao homem e isso não somente a fim de que seja sensível ao que se faz para aliviar-lhe tal jugo, mas sobretudo a fim de que conheça cedo em que categoria a providência a colocou, que não se eleve acima de sua alçada e que nada de humano seja estranho à sua pessoa.

Instigados desde o nascimento pela indolência na qual foram alimentados, pela consideração que todo o mundo tem por eles, pela facilidade em obter tudo o que desejam, a pensar que tudo deve ceder a seus caprichos, os jovens entram na sociedade com esse preconceito inconveniente e muitas vezes só se corrigem à força de humilhações, de afrontas e de desesperos; ora, gostaria muito de evitar a meu filho essa segunda e mortificante educação, dando-lhe, com a primeira, uma mais justa opinião das coisas. Resolvera a princípio conceder-lhe tudo o que pedisse, persuadida de que os primeiros impulsos da natureza são sempre bons e salutares. Mas não tardei a saber que, ao considerar como um direito o fato de serem obedecidas, as crianças saíam do estado natural quase ao nascer e adquiriam nossos vícios pelo nosso exemplo, os delas por nossa leviandade. Vi que se quisesse contentar todos os seus caprichos eles cresceriam com minha complacência, que haveria sempre um ponto em que seria preciso parar e em que a recusa se lhe tornaria tanto mais sensível por estar menos acostumada a ela. Não podendo pois, enquanto esperava a razão, evitar-lhe todo pesar, preferi o menor e o de menor duração. Para que uma recusa lhe fosse menos cruel, acostumei-o logo à recusa e, para poupar-lhe longos desesperos, lamentações, rebeldias, tornei qualquer recusa irrevogável. É verdade que recuso o menos possível e que penso duas vezes antes de fazê-lo. Tudo o que se lhe concede é concedido sem condições, logo ao primeiro pedido, e somos muito indulgentes neste ponto: mas nunca obtém alguma coisa sendo importuno; o choro e a adulação são igualmente inúteis. Convenceu-se tão bem desse fato que cessou de usá-los; à primeira palavra resigna-se e não se apoquenta mais ao ver fechar-se um cartucho de bombons que desejaria comer do que ver voar um pássaro que desejaria agarrar, pois sente a mesma impossibilidade de ter um e outro. Não vê no que se lhe retira nada mais do que não pôde conservar nem no que se lhe recusa senão o que não pôde obter e, longe de golpear a mesa contra a qual se feriu, não bateria na pessoa que lhe resiste. Em tudo o que o aflige sente o império da necessidade, o efeito de sua própria fraqueza, nunca a obra da malquerência alheia... Um momento! Disse ela com uma certa veemência, ao ver que eu ia responder, pressinto vossa objeção, chegarei a ela num instante.

O que alimenta a gritaria das crianças é a atenção que lhe damos, seja para ceder a elas seja para contrariá-las. Às vezes, para chorar o dia inteiro basta-lhes perceber que não queremos que chorem. Quer as adulemos quer as ameacemos, os meios que usamos para fazê-las calar são todos perniciosos e quase sempre ineficazes. Ocuparmo-nos com seus choros é para elas uma razão para continuá-los, mas corrigem-se logo quando veem que não lhes damos importância pois, grandes e pequenos, ninguém gosta de trabalho inútil. Eis exatamente o que aconteceu com meu filho mais velho. Era a princípio um pequeno gritão que atordoava todo mundo e sois testemunha de que ninguém o ouve agora na casa, até parece que não há crianças. Chora quando sofre, é a voz da natureza que nunca se deve coagir, mas cala-se no momento em que não sofre mais. Assim, presto muita atenção a seu choro, tendo a certeza de que nunca chora em vão. Com isso ganho a certeza de saber o momento exato em que sente dor e aquele em que não sente, quando está com saúde e quando está doente; vantagem que se perde com aqueles que choram por capricho e somente para se fazerem acalmar. De resto, confesso que isso não é fácil de se obter das Amas e das governantas pois, como nada é mais aborrecido do que ouvir sempre uma criança queixar-se e como essas boas mulheres nunca veem senão o instante presente, não pensam que, fazendo calar a criança hoje, ela chorará mais amanhã. O pior é que a obstinação que adquire terá consequências quando tiver mais idade. A mesma causa que a torna gritona aos três anos torna-a rebelde aos doze, briguenta aos vinte, arrogante aos trinta e insuportável a vida inteira.

Chego agora a vós, disse-me sorrindo. Em tudo o que se concede às crianças, elas veem facilmente o desejo de comprazer-lhes; em tudo o que delas se exige ou que a elas se recusa, devem supor razões, sem pedi-las. É outra vantagem que se ganha ao usar com elas antes a autoridade do que a persuasão nas ocasiões necessárias pois, como não é possível que percebam às vezes a razão que temos em agir assim, é natural que a suponham, mesmo quando não tiverem condições de vê-la. Pelo contrário, logo que tivermos submetido alguma coisa ao seu julgamento, desejam decidir sobre tudo, tornando-se sofistas, sutis, de má-fé, fecundos em trapaças, procuram sempre reduzir ao silêncio os que têm a fraqueza de expor-se às pequenas luzes. Quando se é obrigado a justificar-lhes as coisas que não estão em condições de compreender, atribuem ao capricho a conduta mais prudente, logo que ela estiver acima de seu alcance. Numa palavra, o único meio de torná-las dóceis à razão não é o de raciocinar com elas mas o de bem convencê-las de que a razão está acima de sua idade, pois nesse caso a supõem no lado em que deve estar, a menos que não se lhes dê justo motivo para pensar de outra maneira. Sabem perfeitamente que não se quer atormentá-las quando têm certeza de que as amamos e as crianças raramente se enganam neste ponto. Portanto, quando recuso alguma coisa às minhas, não argumento com elas, não lhes digo por que não quero mas ajo de forma que o vejam tanto quanto possível e, algumas vezes, a posteriori. Dessa maneira, acostumam-se a compreender que nunca as recuso sem ter uma boa razão, embora nem sempre a percebam.

Baseada no mesmo princípio, não suportarei também que meus filhos se intrometam na conversa das pessoas sensatas e imaginem tolamente ter seu lugar entre elas como os outros, quando se suporta sua tagarelice fora de hora. Quero que respondam modestamente e em poucas palavras quando são interrogadas sem nunca falar por movimento próprio e, sobretudo, sem que intervenham para questionar, fora de propósito, as pessoas mais idosas do que elas, às quais devem respeito.

Na verdade, Júlia, disse interrompendo-a, isso é muito rigor para uma mãe tão terna! Pitágoras não era mais severo com seus discípulos do que sois com os vossos. Não somente não os tratais como homens mas dir-se-ia que temeis vê-los deixar cedo demais de serem crianças. Que modo mais agradável e mais seguro têm para se instruírem do que interrogar, sobre as coisas que ignoram, as pessoas mais esclarecidas do que eles? Que pensariam de vossas máximas as Senhoras de Paris que pensam que seus filhos nunca tagarelam suficientemente cedo nem por tempo suficiente e que julgam o espírito que terão quando adultos pelas tolices que recitam enquanto jovens? Wolmar dir-me-á que isso pode ser bom num país em que o primeiro mérito é o de bem tagarelar, e onde se é dispensado de pensar contanto que se fale. Mas vós, que desejais preparar para vossos filhos uma sorte tão doce, como conciliar tanta felicidade com tanta coação e onde fica, entre toda essa coação, a liberdade que desejais deixar-lhes?

Como? Replicou imediatamente: será constranger sua liberdade o fato de impedi-los de atentar contra a nossa e somente saberiam ser felizes se todo um grupo, em silêncio, admirasse suas puerilidades? Impeçamos que sua vaidade nasça ou, pelo menos, detenhamos seus progressos; isto significa trabalhar realmente para sua felicidade, pois a vaidade do homem é a fonte de seus maiores sofrimentos e não há ninguém tão perfeito e tão festejado a quem ela não traga ainda mais pesares do que prazeres(6).

Que pode pensar uma criança de si mesma, quando vê ao seu redor todo um círculo de pessoas sensatas a escutá-la, provocá-la, admirá-la, esperar, com uma indolente solicitude, os oráculos que saem de sua boca e soltar exclamações, com ressonâncias de alegria, a cada absurdo que diz? A cabeça de um homem teria muita dificuldade em aguentar todos esses falsos aplausos; julgai o que acontecerá com a dela! A tagarelice das crianças assemelha-se às predições dos Almanaques. Seria um prodígio se, entre tantas palavras vãs, o acaso nunca fornecesse um encontro feliz. Imaginai o que fazem então as exclamações de lisonja numa pobre mãe já por demais enganada por seu próprio coração e numa criança que não sabe o que diz e sente-se festejada! Não penseis que pelo fato de conhecer o erro eu me julgue isenta dele. Não, vejo o erro e caio nele. Mas, se admiro as réplicas de meu filho, pelo menos admiro-as em segredo, ele nada aprende vendo-me aplaudi-lo por tornar-se tagarela e vaidoso e os lisonjeadores não têm o prazer de rir de minha fraqueza querendo que eu as repita.

Um dia em que tivemos visitas, ao ir dar algumas ordens vi, ao voltar, quatro ou cinco patetas já crescidos ocupados em brincar com ele e preparando-se para contar-me, com um ar de ênfase, não sei quantas gentilezas que acabavam de ouvir e com que pareciam totalmente maravilhados, Senhores, disse-lhes com bastante frieza, não duvido que não saibais fazer com que algumas marionetes digam coisas muito bonitas, mas espero que um dia meus filhos sejam homens, que ajam e falem por si mesmos e então ficarei sabendo, sempre com alegria no coração, tudo o que tiverem dito e feito de bom. Desde que se viu que essa maneira de lisonjear não surtia efeito, brinca-se com meus filhos como se brinca com crianças, não como com um Polichinelo; não se banca mais o coadjuvante e eles valem sensivelmente mais desde que não são mais admirados.

Quanto às perguntas, elas não lhes são indistintamente proibidas. Sou a primeira a dizer-lhes que perguntem devagar, em particular, ao pai ou a mim, tudo o que precisem saber. Mas não suporto que interrompam uma conversa séria para ocupar todo mundo com a primeira bobagem que lhes passe pela cabeça. A arte de interrogar não é tão fácil quanto se pensa. É bem mais a arte dos mestres do que dos discípulos, é preciso ter já aprendido muitas coisas para saber perguntar o que não se sabe. O sábio sabe e indaga, diz um provérbio indiano, mas o ignorante não sabe nem mesmo o que indagar(7). Não tendo essa ciência preliminar, as crianças livremente só fazem quase sempre perguntas ineptas que não servem para nada, ou profundas e difíceis cuja solução ultrapassa seu alcance e, visto que não devem saber tudo, é importante que não tenham o direito de perguntar tudo. Eis por quê, de uma maneira geral, instruem-se melhor com as perguntas que lhes fazemos do que com as que elas mesmas fazem.

Ainda que esse método lhes seja tão útil quanto se pensa, a primeira e a mais importante ciência que lhes convém não será a de serem discretos e modestos e haverá alguma outra que devam aprender em prejuízo daquela? Que produz então nas crianças essa emancipação da palavra antes da idade de falar e esse direito de submeter descaradamente os homens a seu interrogatório? Pequenas perguntadoras tagarelas, que perguntam menos para se instruírem do que para importunar, para que todo mundo se ocupe delas, e que tomam ainda maior gosto por essa tagarelice pelo embaraço em que sabem que lançam, às vezes, suas perguntas indiscretas, de maneira que cada um se sente inquieto logo que elas abrem a boca. Não é essa tanto uma forma de instruí-las quanto de torná-las estouvadas e vãs, inconveniente maior, em minha opinião, do que a vantagem que assim adquirem, pois a ignorância diminui gradualmente mas a vaidade aumenta sempre.

O pior que poderá acontecer com essa reserva por demais prolongada seria que meu filho, na idade da razão, tivesse uma conversa menos ágil, a palavra menos viva e menos abundante e, considerando como esse hábito de passar a vida dizendo coisas sem importância amesquinha o espírito, consideraria essa feliz esterilidade mais como um bem do que como um mal. As pessoas ociosas, sempre entediadas consigo mesmas, esforçam-se por dar um grande valor à arte de diverti-las e dir-se-ia que o saber viver consiste em dizer apenas palavras vãs como em dar somente dons inúteis: mas a sociedade humana tem um objetivo mais nobre e seus verdadeiros prazeres têm maior solidez. A voz da verdade, a mais digna voz do homem, o único órgão cujo uso o distingue dos animais, não lhe foi dada para que dela não tirasse um melhor partido do que o fazem com seus gritos. Degrada-se abaixo deles quando fala para não dizer nada e o homem deve ser homem até em suas distrações. Se há polidez em aturdir todo mundo com um vão palavrório, vejo uma outra bem mais verdadeira em deixar falar de preferência os outros, em ter maior consideração pelo que dizem do que pelo que diríamos nós mesmos e em mostrar que os estimamos demais para pensar diverti-los com ninharias. O bom uso da sociedade, aquele que faz com que nela sejamos procurados e amados não é tanto o de brilhar mas o de fazer com que os outros brilhem e de, à força de modéstia, dar a seu orgulho maior liberdade. Não temamos que um homem de espírito que só se abstém de falar por reserva e discrição possa alguma vez ser considerado um tolo. Em qualquer país não é possível julgar um homem pelo que não disse e desprezá-lo por ter-se calado. Pelo contrário, observa-se em geral que as pessoas silenciosas impõem respeito, que diante delas está-se atento e que se lhe presta muita atenção quando falam, o que, deixando-lhes a escolha das ocasiões e não perdendo nada do que dizem, põe toda a vantagem do lado delas. É tão difícil para mais sábio dos homens conservar toda a sua presença de espírito num longo fluxo de palavras, é tão raro não lhe escaparem coisas de que se arrependa mais tarde, que prefere reter o bom a arriscar o mau. Enfim, quando não é por falta de espírito que se cala, se não fala, por mais discreto que possa ser, a culpa é dos que estão com ele.

Mas há um longo caminho dos seis anos aos vinte; meu filho não será sempre criança e, à medida que sua razão comece a nascer, a intenção de seu pai é de realmente a deixar exercer. Quanto a mim, minha missão não vai até lá. Alimento crianças e não tenho a presunção de querer formar homens. Espero, disse, olhando seu marido, que mãos mais dignas se encarregarão desse trabalho. Sou mulher e mãe, sei manter-me em meu lugar. Ainda uma vez, função de que estou encarregada não é a de educar meus filhos mas de prepará-los para serem educados.

Nisso apenas sigo mesmo, ponto a ponto, o sistema do Sr. de Wolmar e mais avanço mais sinto quanto é excelente e justo e quanto se harmoniza com o meu. Considerai meus filhos e sobretudo o mais velho, conheceis outros mais felizes na terra, mais alegres, menos importunos? Vós os vedes saltar, rir, correr o dia inteiro sem incomodar ninguém. De que prazeres, de que independência que podem ter em sua idade não gozam ou abusam? Contêm-se tão pouco diante de mim do que em minha ausência. Pelo contrário, sob os olhos de sua mãe têm sempre um pouco mais de confiança e, embora seja eu a autora de toda a severidade que experimentam, acham-me sempre menos severa, pois não poderia suportar não ser o que mais amam no mundo.

As únicas leis que se lhes impõem ao nosso lado são as da própria liberdade, isto é, as de não importunar as pessoas mais do que elas os importunam, de não gritar mais alto do que lhes falam e, como não os obrigamos a se ocuparem de nós, também não quero que desejem que nos ocupemos deles. Quando não respeitam tão justas leis, toda sua pena é a de serem imediatamente mandados embora e toda minha arte para que isso seja uma pena é a de fazer com que não se sintam em nenhum lugar tão bem quanto aqui. Fora isso, não são coagidos a nada, nunca são forçados a aprender alguma coisa, não são entediados com vãs punições, nunca são repreendidos; as únicas lições que recebem são lições de prática recebidas na simplicidade da natureza. Cada um, bem instruído neste ponto, conforma-se às minhas intenções com uma compreensão e um cuidado que nada me deixam a desejar e, se há algum erro a temer, minha constância o evita ou o repara facilmente.

Ontem, por exemplo, tendo o mais velho tirado o tambor ao mais moço, fizera-o chorar. Fanchon não disse nada mas, uma hora depois, no momento em que aquele que havia roubado o tambor estava mais entretido com ele, ela lho retomou; ele a seguia, pedindo-o novamente e chorando por sua vez. Ela lhe disse: vós o tomastes à força, de vosso irmão, eu vo-lo retomo da mesma maneira, que tendes a dizer? Não sou a mais forte? Depois, pôs-se a bater a caixa imitando-o, como se tivesse nisso muito prazer. Até esse momento tudo ia maravilhosamente bem. Mas algum tempo depois, ela quis devolver o tambor ao mais moço, então detive-a, pois não era mais uma lição da natureza e daí poderia nascer um primeiro germe de inveja entre os dois irmãos. Ao perder o tambor, o mais jovem suportou a dura lei da necessidade, o mais velho sentiu sua injustiça, ambos conheceram sua fraqueza e se consolaram em seguida.

Um plano tão novo e tão contrário às ideias conhecidas assustara-me a princípio. À força de mo explicar fizeram enfim com que o admirasse e senti que, para guiar o homem, a marcha da natureza é sempre a melhor. O único inconveniente que encontrava nesse método, e esse inconveniente pareceu-me muito grande, era o de negligenciar nas crianças a única faculdade que possuem em todo o seu vigor e que somente diminui com a idade. Parecia-me que, segundo seu próprio sistema, mais as operações do entendimento eram fracas, insuficientes, mais se deveria exercitar e fortificar a memória, tão própria então a sustentar o trabalho. É ela, dizia eu, que deve substituir a razão até seu nascimento e que a enriquece quando tiver nascido. Um espírito que não se exercita para nada tornar-se lento e pesado na inação. A semente não pega num campo mal preparado e começar por ser estúpido é uma estranha preparação para aprender a tornar-se racional. Como, estúpido! Exclamou logo a Sra. de Wolmar. Estaríeis confundindo duas qualidades tão diferentes e quase tão contrárias quanto a memória e o julgamento?(8) Como se a quantidade de coisas mal digeridas e desconexas com que se enche uma cabeça ainda fraca não lhe trouxesse maior prejuízo do que proveito à razão! Confesso que, de todas as faculdades do homem, a memória é a primeira que se desenvolve e é a mais fácil de cultivar nas crianças: mas, em vossa opinião, qual se deve preferir, o que lhes é mais fácil de aprender ou o que lhes importa mais saber?

Levai em consideração o uso que nelas se faz dessa facilidade, a violência que se lhes deve fazer, a eterna coação a que é preciso sujeitá-las para pôr em evidência sua memória e comparai a utilidade que disso retiram ao mal que se lhes faz sofrer por isso. Como! Forçar uma criança a estudar línguas que nunca falará, mesmo antes de ter bem aprendido a sua, fazer-lhe incessantemente repetir e construir versos que não compreende e cuja harmonia para ela está toda apenas na ponta dos dedos, confundir seu espírito com círculos e esferas de que não tem a menor ideia, sobrecarregá-la com mil nomes de cidades e de rios que confunde continuamente e que reaprende todos os dias; será isso cultivar sua memória em proveito do seu julgamento e todo esse frívolo saber valerá uma única das lágrimas que lhe custa?

Se tudo isso fosse apenas inútil, eu me queixaria menos, mas será nada ensinar uma criança a contentar-se com palavras e a crer que sabe o que não pode compreender? Será possível que uma tal quantidade de coisas não prejudique as primeiras ideias com que se deve dotar uma cabeça humana e não seria preferível não ter memória a enchê-la com toda essa miscelânea em prejuízo dos conhecimentos necessários dos quais ocupa o lugar?

Não, se a natureza deu ao cérebro das crianças essa maleabilidade que o torna próprio a receber toda espécie de impressões, não é para que nele se gravem nomes de Reis, datas, termos de heráldica, de esfera, de geografia e todas essas palavras sem nenhum sentido para sua idade e sem nenhuma utilidade para qualquer idade, com que se sobrecarrega sua triste e estéril infância; mas é para que todas as ideias relativas à condição de homem, todas as que dizem respeito à sua felicidade e o esclarecem sobre seus deveres nele sejam gravadas cedo em caracteres indeléveis e lhe sirvam para conduzir-se, durante sua vida, de uma forma que convenha a seu ser e suas faculdades.

Sem estudar nos livros, a memória de uma criança não permanece por isso ociosa: tudo o que vê, tudo o que ouve a impressiona e ela o lembra; registra em si mesma as ações, as conversas dos homens e tudo o que a rodeia é o livro com o qual, sem pensar, enriquece continuamente sua memória enquanto espera que seu julgamento possa aproveitar. É na escolha desses assuntos, é no cuidado de apresentar-lhe sem cessar os que deve conhecer e de esconder-lhe os que deve ignorar que consiste a verdadeira arte de cultivar a primeira de suas faculdades e é por esse caminho que se deve procurar formar um acervo de conhecimentos que serve para sua educação durante a juventude e para sua conduta em todas as épocas. Esse método, é verdade, não forma pequenos prodígios e não faz brilhar as governantas e os preceptores mas forma homens sensatos, robustos, sãos de corpo e de entendimento que, sem serem admirados quando jovens, fazem-se honrar quando adultos.

Não penseis, contudo, continuou Júlia, que se negligenciam completamente aqui esses cuidados a que dais tanta importância. Uma mãe um pouco vigilante controla as paixões de seus filhos. Há meios para excitar e alimentar neles o desejo de aprender ou de fazer tal ou tal coisa e, na medida em que tais meios podem conciliar-se com a mais completa liberdade da criança e não engendram nela nenhuma semente de vício, uso-os com bastante boa vontade, sem obstinar-me quando não há sucesso, pois ela terá sempre tempo de aprender mas não há um único momento a perder para formar-lhe um bom natural e o Sr. de Wolmar tem uma tal ideia do desenvolvimento da razão que afirma que, ainda que seu filho nada soubesse aos doze anos, não deixaria de estar instruído aos quinze, sem contar que nada é menos necessário do que ser sábio e nada o é mais do que ser sensato e bom.

Sabeis que nosso filho mais velho já lê passavelmente. Eis como nasceu nele a vontade de aprender a ler. Tinha a intenção de dizer-lhe, de vez em quando, para diverti-lo, alguma fábula de La Fontaine e já começara quando ele me perguntou se os corvos falavam. Vi imediatamente a dificuldade para fazer-lhe sentir bem claramente a diferença entre o apólogo e a mentira; safei-me da dificuldade como pude e, convencida de que as fábulas são feitas para os homens mas de que é preciso sempre dizer a verdade nua às crianças, suprimi La Fontaine. A ele substituí uma coletânea de pequenas histórias interessantes e instrutivas, a maioria extraídas da Bíblia; depois, vendo que a criança tomava gosto pelos meus contos, imaginei tornar-lhos ainda mais úteis, procurando compor eu mesma outros tão divertidos quanto me foi possível e adaptando-os sempre às necessidades do momento. Escrevia-os pouco a pouco num belo livro ornado de imagens que conservava bem guardado e do qual lhe lia, de tempos em tempos, algum conto, raramente, não por muito tempo, e repetindo com frequência os mesmos, com comentários, antes de passar a outros novos. Uma criança ociosa está sujeita ao tédio, os pequenos contos serviam de remédio mas, quando o via mais avidamente atento, lembrava-me, às vezes, de uma ordem a dar e abandonava-o no momento mais interessante, deixando, negligentemente, o livro. Ele ia logo pedir à sua Ama ou a Fanchon ou a algum outro que acabasse a leitura: mas como não deve nada ordenar a ninguém e como todos estavam prevenidos, nem sempre obedeciam. Um recusava, outro tinha o que fazer, outro gaguejava lentamente e mal, outro, seguindo meu exemplo, deixava um conto pela metade. Quando o viram bem aborrecido com tanta dependência, alguém lhe sugeriu secretamente que aprendesse a ler para libertar-se dela e folhear o livro à vontade. Ele apreciou o projeto. Foi necessário encontrar pessoas bastante complacentes para aceitar ensiná-lo, nova dificuldade que se levou apenas tão longe quanto era necessário. Apesar de todas essas precauções, ele se cansou três ou quatro vezes; não interferimos. Apenas, esforcei-me por tornar os contos ainda mais divertidos e ele voltou à carga com tanto ardor que, embora não faça seis meses que começou a sério, estará em breve em condições de ler sozinho a coletânea.

É mais ou menos assim que procurarei excitar seu zelo e sua boa vontade para adquirir os conhecimentos que exigem continuidade e aplicação e que podem convir à sua idade, mas embora aprenda a ler não é dos livros que extrairá esses conhecimentos, pois não se encontram neles e a leitura não convém de forma nenhuma às crianças. Quero também acostumá-lo cedo a alimentar sua cabeça com ideias e não com palavras, é a razão pela qual nunca lhe faço aprender alguma coisa de cor.

Nunca? Interrompi: é muita coisa, pois é preciso, além disso, que aprenda seu catecismo e suas preces. É o que vos engana, replicou ela. No que diz respeito à prece todas as manhãs e todas as noites faço a minha em voz alta no quarto de meus filhos e é o suficiente para que a aprendam sem que sejam obrigados a fazê-lo: quanto ao catecismo, não sabem o que é. Como, Júlia! Vossos filhos não aprendem o catecismo? Não, meu amigo, meus filhos não aprendem o catecismo. Como! Disse eu profundamente espantado, uma mãe tão piedosa!... Não vos compreendo. E por que vossos filhos não aprendem catecismo? Afim de que creiam nele um dia, disse ela, quero fazer deles Cristãos um dia. Ah! Compreendi, exclamei, não quereis que sua fé seja feita só de palavras nem que saibam apenas sua Religião, mas que acreditam nela e pensais, com razão, que é impossível ao homem acreditar no que não compreende. Sois bem contestador, disse-me sorrindo o Sr. de Wolmar, sereis Cristão, por acaso? Esforço-me para sê-lo, disse- lhe com firmeza. Creio, da Religião, tudo o que dela posso compreender e respeito o resto sem rejeitá-la. Júlia fez-me um sinal de aprovação e retomamos o assunto de nossa conversa.

Após ter entrado em outros detalhes que me fizeram conceber quanto o zelo materno é ativo, infatigável e previdente, ela concluiu observando que seu método reportava-se exatamente às duas finalidades que se propusera, isto é, as de deixar que se desenvolva o natural das crianças e de estudá-lo. As minhas não são incomodadas em nada, disse, e não poderiam abusar de sua liberdade, seu caráter não pode nem depravar-se nem reprimir-se; deixa-se seu corpo fortificar-se em paz e seu julgamento germinar, a escravidão não avilta sua alma, os olhares alheios não fazem fermentar seu amor-próprio e não se julgam nem homens poderosos nem animais acorrentados, mas crianças felizes e livres. Para defendê-los dos vícios que não estão nelas têm, parece-me, uma defesa mais forte do que palavras que não ouviriam ou que em pouco tempo as aborreceriam. É o  exemplo dos bons costumes de tudo o que as rodeia, são as conversas que ouvem, que são aqui naturais a todo mundo e que não se precisam organizar propositalmente para elas; é a paz e a união de que são testemunhas, é a harmonia que veem reinar sem cessar, seja na conduta recíproca de todos, seja na conduta e nas palavras de cada um.

Criados além disso em sua primeira simplicidade, de onde lhes viriam os vícios cujos exemplos não viram, paixões que não têm nenhuma ocasião de sentir, preconceitos que não lhes são inspirados por nada? Vedes que nenhum erro os atinge, que nenhuma má inclinação se mostra neles. Sua ignorância não é irredutível, seus desejos não são obstinados, as inclinações para o mal são evitadas, a natureza é justificada e tudo nos prova que os defeitos de que a acusamos não são obra dela mas nossa.

É assim que, entregues à inclinação de seu coração, sem que nada a mascare nem a altere, nossos filhos não recebem uma forma exterior e artificial mas conservam exatamente a de seu caráter original; é assim que esse caráter se desenvolve diariamente diante de nossos olhos sem reservas e que podemos estudar os movimentos da natureza até em seus princípios mais secretos. Certos de nunca serem repreendidos nem punidos, não sabem mentir nem esconder-se e, em tudo o que dizem, seja entre si seja a nós, deixam ver sem embaraço tudo o que têm no fundo da alma. Livres de tagarelar entre si o dia inteiro, nem mesmo pensam em constranger-se um momento diante de mim. Nunca os repreendo, nunca os faço calar, nem finjo escutá-los e, se dissessem as coisas mais censuráveis do mundo, não daria mostras de saber alguma coisa: mas, de fato, escuto-os com a maior atenção sem que desconfiem; mantendo em registro exato do que fazem e do que dizem, são as produções naturais do fundo que é preciso cultivar. Um assunto depravado em suas bocas é uma erva estranha cuja semente foi trazida pelo vento; se eu a cortar com uma reprimenda, em breve germinará novamente: em lugar disso, procuro secretamente sua raiz e tenho o cuidado de arrancá-la. Sou apenas, disse-me rindo, a criada do Jardineiro, mondo o jardim, retiro-lhe as más ervas, cabe a ele cultivar as boas.

Convenhamos também que, com todo o trabalho que teria podido ter, era preciso da mesma forma ser bem secundada para esperar vencer e que o sucesso de meus cuidados dependesse do concurso de circunstâncias que talvez somente aqui tenham existido. Eram necessárias as luzes de um pai esclarecido, para distinguir, através dos preconceitos estabelecidos, a verdadeira arte de dirigir as crianças desde seu nascimento; era necessária toda a sua paciência para prestar-se à execução sem nunca desmentir suas lições por sua conduta; eram necessárias crianças bem nascidas nas quais a natureza tivesse agido suficientemente para que se pudesse amar o que era somente sua obra; era preciso ter ao nosso lado somente criados inteligentes e bem intencionados, que não se cansassem de entrar nas intenções dos patrões; um único criado brutal ou adulador teria bastado para estragar tudo. Na verdade, quando se pensa quantas causas estranhas podem prejudicar os melhores desígnios e transformar os projetos mais bem combinados, deve-se agradecer a fortuna por tudo o que se faz de bem na vida e dizer que a sabedoria depende muito da felicidade.

Dizei, exclamei, que a felicidade depende mais ainda da sabedoria! Não vedes que esse concurso de que vos felicitais é vossa obra e que tudo o que de vós se aproxima é obrigado a assemelhar-se a vós? Mães de família! Quando vos queixais de não serdes secundadas, como conheceis mal vosso poder! sede tudo o que eleveis ser, superareis todos os obstáculos, forçareis todos a preencher seus deveres se preencherdes bem todos os vossos. Vossos direitos não são os da natureza? Apesar das máximas do vício, eles serão sempre caros ao coração humano. Ah! Dignai-vos ser mulheres e mães e o mais doce poder que existe na terra será também o mais respeitado!

Concluindo essa conversa, Júlia observou que tudo se tornava mais fácil a partir da chegada de Henriqueta. É certo, disse, que precisaria ter muito menos cuidados e habilidade, se quisesse introduzir a emulação entre os dois irmãos, mas esse meio parece-me por demais perigoso, prefiro ter mais trabalho e nada arriscar. Henriqueta supre esse fato; como é de outro sexo, mais velha do que eles, como ambos a amam até a loucura e como ela tem um juízo acima de sua idade, faço dela, num certo sentido, a primeira governanta deles e com tanto mais sucesso suas lições são menos suspeitas.

Quanto a ela, sua educação está sob minha responsabilidade, mas os princípios são tão diferentes que merecem uma conversa à parte. Pelo menos, posso dizer desde agora que será difícil nela acrescentar algo aos dons da natureza e que valerá sua própria mãe se alguém no mundo a puder valer.

Milorde, esperamo-vos a cada dia e esta deveria ser minha última Carta. Mas compreendo o que prolonga vossa estada no exército e tremo. Júlia não está menos inquieta, pede-vos que mandeis notícias vossas com maior frequência e vos suplica que penseis, ao expor vossa pessoa, como esbanjais o sossego de vossos amigos. Quanto a mim, nada tenho a dizer- vos. Fazei vosso dever, um conselho covarde não pode sair de meu coração como também não pode ter acesso ao vosso. Caro Bomston, sei-o perfeitamente, a única morre digna de tua vida seria a de derramar teu sangue pela glória de teu país, mas não deves dar conta de tua vida àquele que somente por ti conservou a sua?

Notas
  1. Duas Cartas escritas em momentos diferentes falavam sobre o assunto desta, o que ocasionava muitas repetições inúteis. Para retirá-las, reuni estas duas Cartas numa só. De resto, sem querer justificar a excessiva extensão de várias cartas que compõe esta coletânea, observarei que as cartas dos solitários são longas e raras, as das pessoas da sociedade freqüentes e curtas. Basta observar esta diferença para sentir imediatamente sua razão. (N.A.)
  2. “Emudecem as línguas e falam as almas.” (Marini) (N.T.)
  3. O próprio Locke, o sábio Locke, esqueceu-a; diz bem mais o que se deve exigir das crianças do que o que se deve fazer para obtê-lo. (N.A)
  4. Esta doutrina tão verdadeira surpreende-me no Sr. de Wolmar; veremos em breve por quê. (N.A.)
  5. A pedagogia de Rousseau, que será o tema do Emílio, publicado em maio de 1762. (N.T.)
  6. Se alguma vez a vaidade tomou alguém feliz na terra, infalivelmente esse feliz era apenas um tolo. (N.A.)
  7. Este provérbio é extraído de Chardin, Tomo 5, p. 170, in-12. (N.A.)
  8. Isto não me parece bem observado. Nada é tão necessário ao julgamento quanto a memória: é verdade que não é a memória das palavras. (N.A.)

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