sábado, 7 de fevereiro de 2009

Escola Politécnica, ano 1900

Lima Barreto

Excerto de Diário íntimo (São Paulo: Brasiliense, 1961, pp. 27-28).


02 de julho de 1900

"A antipatia do Largo de São Francisco fica mais acentuada nas primeiras horas da manhã, dos dias de verão. O sol o cobre inteiramente e se espadana por ele todo com a violência de um flagelo. Pelo ar, a poeira forma uma película vítrea que fulgura ao olhar, e do solo, com o revérbero, sobe um bafio de forja que oprime os transeuntes. Não há por toda a praça uma nesga de sombra, e as pessoas que saltam dos bondes, caminham apressadamente para a doçura da Rua do Ouvidor. Vão angustiadas, e opressas, parecendo tangidas por ocultos carrascos impiedosos. Os negros chapéus-de-sol dos homens e as pintalgadas sombrinhas das senhoras, ao balanço da marcha, sobem e descem como se flutuassem ao sabor das ondulações de um curso d'água. São como flores, grandes flores, nenúfares e ninféias, estranhas e caprichosas, que recurvassem as imensas pétalas ao sol causticante das nove horas da manhã. A superfície lisa da fachada da Politécnica é o espelho, onde se refletem e concentram os raios do sol que quer o largo vazio; e o trânsito se faz para a Rua do Ouvidor, segundo dois recurvados filetes que terminam num e noutro lado daquela fachada. À violência do sol nada resiste. O granito da portaria da igreja de São Francisco parece estalar. Os tílburis em fileira ao centro da praça rebrilham como ágatas e as suas pilecas, àquele calor, dormem resignadamente. De quando em quando, por entre a fileira dos tílburis, um rapazola atravessa e lépido sobe as escadas da Escola Politécnica. São os únicos transeuntes que se lançam na praça corajosamente. As aulas começam às dez horas e eles vêm vindo meia hora antes, em pleno suplício. No começo do ano é bom de ver o pátio central por essa hora. Os novos e os velhos, os crônicos e os distintos, encontram-se e põem-se a esgrimir espiritualmente, procurando cada qual dizer as mais maravilhosas coisas. Alunos há que só aparecem na Escola durante o primeiro mês; depois vão-se e só voltam pelo começo do ano seguinte, para conversar, discutir e... [...] Os positivistas são inflexíveis. Contrapõem, à dialética dos metafísicos, algumas fórmulas esotéricas da doutrina, e declamam contra a anarquia mental e os sofistas antissociais. Há porém os euclidianos ortodoxos, positivistas ou não, que, por vezes, se opõem com vantagem aos paradoxais impetuosos.

Quando se contempla — iluminados pelo sol vitorioso de março, que esbraseia as telhas do edifício e vem dar, aos descorados arbustos do jardinzito do pátio, um beijo escaldante de vida — quando se contempla aquela porção de rapazes, cujas inteligências moças ainda, no indivíduo e na raça, agitam-se tumultuariamente ao influxo da filosofia europeia, surge-nos aquela quadra espiritual da Europa pelo XII século, quando chegou às suas universidades a Enciclopédia de Aristóteles traduzida."

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